Subindo A Linha

Alcides Ghiggia e a síndrome de Estocolmo

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Arthur de Campos

Síndrome de Estocolmo. Assim é chamado o distúrbio mental desenvolvido por pessoas que passaram por grandes situações de choque e tensão. Consiste na afeição e no carinho desenvolvido pelas vítimas em relação aos seus agressores. Justamente aqueles que causaram tanto sofrimento, amados e queridos por aqueles que sofreram em suas mãos. Ou pés, em nosso caso.

O seu nome era Alcides Ghiggia, ou só Ghiggia para os íntimos. Ele foi o responsável por aquele que a mitologia da bola diz ser o maior silêncio já visto em um estádio de futebol em toda a sua história. O ano era 1950, e o palco da façanha era um saudoso Maracanã lotado, com 200 mil pessoas em suas arquibancadas. Ele era o ponta-direita da seleção do Uruguai que enfrentou o Brasil, time da casa, naquele fatídico dia 16 de julho, final da Copa do Mundo.

Falar de sua habilidade com os pés é uma tarefa árdua para aqueles que nem imaginavam que viriam a esse mundo na época em que ele jogava. Mas falar disso, no caso dele é o de menos. Ghiggia era mais que um jogador de futebol: era o cordão umbilical do brasileiro com o fracasso. O último sobrevivente do Maracanazzo, aquele dia que calou milhões de brasileiros e que condenou tantos jogadores daquela seleção (menção honrosa para o goleiro Barbosa que sofreu até os últimos dias de sua vida com o estigma de vilão daquela Copa) e mudou o jeito brasileiro de se olhar para o futebol.

Aquele gol, aos 34 minutos do segundo tempo, em uma tarde ensolarada no Maraca, rasgou as redes de Barbosa e entrou para a história. O Brasil havia aberto o placar com Friaça, sofrido o empate pelos pés de Schiaffino. Mas na cabeça do torcedor, aquilo não era problema. A vitória viria, afinal, somos os brasileiros, não é mesmo? “A ginga joga ao nosso lado, não há o que temer! ”. Enfim, havia ali um Ghiggia para nos lembrar que a derrota não apenas faz parte do jogo, mas pode vir quando se menos espera.

Mas, diferentemente do que se pode pensar, o algoz brasileiro não odiava o Brasil. Muito pelo contrário, desenvolveu um carinho enorme pelo nosso país, e foi abraçado. Era a Síndrome de Estocolmo agindo. O cara que arrancou das nossas mãos o primeiro título mundial era brasileiro, na alma. Tão brasileiro era que morreu do jeito que todo brasileiro amante de futebol sonha: vendo jogo. Morreu vendo o esporte que havia lhe dado tudo na vida. Que nos dá forças todo dia para levantar de manhã e esperar pacientemente as quartas e os domingos.

Síndrome de Estocolmo essa que viria a jogar do nosso lado, oito anos depois na Copa da Suécia. Na própria Estocolmo viria, dos pés do menino de 17 anos que viria a ser coroado Rei, o tão sonhado título, e Ghiggia conseguiu de vez que o povo brasileiro aceitasse as suas desculpas. O Brasil viria a se tornar o maior campeão de Copas do Mundo. A de 50 não fazia mais falta, pois tinham mais cinco na estante que fica no coração do torcedor brasileiro.

E nos braços do povo uruguaio e do povo brasileiro, aos 88 anos ele se foi, e com toda certeza em paz. Nos deixou órfãos de uma figura simpática e afável, que amava o Futebol acima de tudo, e nos trouxe a lembrança da derrota retumbante, pouco mais de um ano após a mais retumbante derrota da história do Futebol, e que com certeza foi pouco. Fica a certeza que, lá do céu, ele bate bola com os anjos e, com uma bandeira do Uruguai e outra do Brasil na mão, torce por dias melhores para nós, e a reflexão do que se fazer depois de um trauma daqueles. Que venha outra síndrome de Estocolmo.

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