Anjos e demônios

Vinicius Prado Januzzi

Uma das primeiras palavras que ouvimos quando o tema de debate é torcida organizada é violência. Você liga o rádio, a TV ou acessa a internet após o jogo e é bombardeado: “Vândalos entram em confronto”, “Torcidas do próprio time entram em conflito durante a partida”, “Violência e barbaridade no clássico de domingo”.

Há uma premissa óbvia aqui: ser torcedor organizado é ser violento, logo, é ser bandido, marginal, criminoso, bárbaro, selvagem, vândalo, desocupado, vagabundo, pilantra. Fazer parte de uma torcida organizada é integrar uma facção, um bando, uma quadrilha criminosa, uma matilha. Os adjetivos são muitos e monotemáticos: torcida organizada é o mal.

E como fazer para eliminar o mal? Nada mais simples. São duas propostas básicas que se discutem hoje em dia: uma que propõe jogos de torcida única e outra que debate a extinção das torcidas organizadas. Ambas, a bem da verdade, fazem parte do mesmo viés de políticas: excluir. Não é preciso pensar muito para ver que a solução é frouxa, além de errônea e perversa.

E isso por quê? Sejamos uma autoridade nesse momento. Você vê que há um problema que você precisa corrigir. Ou não torcemos mais ou fingimos que vamos excluir certos grupos de pessoas. Alguém aí imagina que por decisão legal, formal, burocrática, jurídica, sumirão os torcedores organizados? De uma hora para outra, concordarão todas e todos das agremiações que “realmente, o que fizemos foi feio, os caras estão certos.”?

Não. Óbvio que não.

Excluir torcidas organizadas é jogar a poeira por baixo do tapete. Imaginem agora que aconteça uma briga fora dos estádios e não há ninguém que esteja identificado com nenhum grupo específico. Você, promotor, olha e pensa: olha, não há mais torcidas, o problema acabou. Seria cômico, se não fosse trágico.

Outra hipótese. Trata-se de uma analogia estúpida, mas é por ela que pensam mais ou menos nossa intelligentsia: vamos partir do pressuposto absurdo de que as torcidas organizadas são facções criminosas; são como o PCC ou o Comando Vermelho, no modo como entendemos grupos criminosos. Eis que por um decreto: “Pelos poderes a mim concedidos, declaro extinto o Comando Vermelho”. Pronto, hora de ir tomar minha Stella na Arena.

Há muitas discussões claras que não queremos travar aqui. E digo no plural, porque boa parte da mídia, dos clubes e de nós torcedores não quer entrar nesse vespeiro. Se a trama é complicada, vamos esperar para ver no que ela vai dar, eu é que não boto minha mão no fogo por isso. Não discutimos os porquês das violências, as deficiências no policiamento e, sobretudo, não entendemos quem são as torcidas organizadas. Quem. Só nos damos conta que elas existem quando vemos algumas brigas. Só olhamos para elas quando queremos enxergar o mal que vemos nelas. É o olho punitivo que só vê o que quer, para fazer o que quer que venha à telha.

Há brigas? Há massacres? Há espancamentos? Há mortes? Sim. Ninguém deveria ser tolo em negar isso para também afugentar o problema. Agora: são esses fenômenos exclusivos das torcidas? Quase como que uma característica intrínseca a elas? São esses torcedores lobos famintos contra os quais nada se pode fazer e nós as ovelhas samaritanas pelas quais é preciso orquestrar algo para nos defender? Bem ou mal, faça sua escolha?

Bobo demais. É claro que não há só santos nas organizadas. Agora, onde há? Que tipo de violência que topamos como legítima? É mais violento o torcedor que bate ou o policial que espanca? É mais violento o sistema que trancafia e joga pessoas aos ratos ou um pequeno grupo que se estraçalha entre si? Nenhum, nem outro. Uns aceitamos, outros não. A uns batemos palmas, nos outros mijamos em cima.

Pois bem, entramos no vespeiro. Porque é preciso entrar; é preciso debater, por a cara a tapa, lutar pelo futebol que queremos. Sair de soluções imediatistas e aparentes. Encarar a violência não como própria de um grupo e ver mais como ela nos atravessa. Não são os pobres os violentos, não são os torcedores corinthianos, os da Gaviões, os da Mancha, os da Urubuzada os que precisamos crucificar. Excluir não é palavra-chave aqui. Porque ou se esconde algo e se vive às custas disso ou se enfrenta e daí vêm as cicatrizes. Por um futebol antielitista, eu prefiro as marcas da luta.

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