Pé de Chinelo

André Porto

A maior sorte de um chinelo tem tudo a ver com os pés, mas nada a ver com ser pisado por eles. Quem já foi o camisa 10 do seu time num fim de tarde do Maracanã da sua rua não pode ousar dizer que chinelos foram feitos para serem calçados. A verdadeira função de um par de havaianas é ser um golzinho. É a glória. Vão aos céus, sem sair do chão. Ninguém pode aceitar que ser pisoteado a vida toda é o sonho de alguém. Quando o Sol começa a querer sumir, se separam do seu par, mas o suficiente para não sentir muita saudade. Logo em frente, outro par de chinelos, geralmente desconhecido. Sabem telepaticamente que também estão vivendo a mesma euforia, apesar do estado temporário de rivais mortais. Somente um sairá dali como vencedor.

A correria começa, a bola rola, a molecada se inspira. Suor, gritaria, golaços, comemorações. Nem mesmo o par vencedor escapa das polêmicas acusações “não foi gol! se passou por cima do chinelo, foi na trave!” e “é lógico que foi gol, só porque tá perdendo vai começar a roubar!”. Entre mortos, feridos e pisoteados, os 4 saem de campo com a certeza de terem tido seus 10 minutos ou 2 gols de fama. Eram os arcos, os objetivos de vida, as razões de castigos por ter chegado muito tarde em casa. Quando se ouvia ao longe a voz da mãe chamando pra tomar banho ou os grandões de números maiores chegando, se resignavam e topavam até serem calçados novamente. Oportunidade não ia faltar. O próximo fim de tarde estava logo ali.

Hoje em dia, os tempos são outros. Passam mais tempo sendo colocados de lado, vida pé de chinelo. Mais sozinhos que chinelo de saci. Sem emoção, sem dramas, sem protagonismo. A maioria prefere jogar futebol com as mãos, ou com os dedos. O máximo é um prego na rua ou uma tira rebelde que se solta de repente. Ninguém dá mais bola pros chinelos.

O futebol é o esporte mais democrático do universo. Só pede um gol e uma bola. Ou um par de chinelos e uma pedrinha. Ou duas marcas no chão e uma fruta caída de uma árvore. Ou só imaginação mesmo. O suficiente para acender a emoção de se fazer um gol. Uma paixão que nem mesmo o melhor simulador consegue imitar. Aquela correria pra terminar o dever de casa pra poder correr de verdade por aí atrás de uma bola é única. Até aceito que podem acontecer algumas mudanças com o tempo. Não quero ser anti tecnologias e modernidades. É só um anseio pela volta do espírito de gritaria das esquinas que foi se calando com o tempo.

Não tem como deixar de pensar que a frieza, a chatice, a morosidade dos jogos que vemos hoje pela televisão – dentro das 4 linhas e principalmente nas arquibancadas – têm uma relação direta com isso. Se a emoção mais pura desse esporte era coisa comum em qualquer esquina, não pode ter morrido. Aquele ar lúdico e inspirador, os sonhos e a imaginação que sempre cercaram o futebol não podem ser esquecidas nunca. Pé no chão, só se for descalço.

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