10 anos do Tri: lembranças de um pivete de 11 anos.

Por Rafael Montenegro

Eu era um pivete estranho. Não jogava bola no intervalo e ironizava 22 marmanjos correrem atrás de uma bola. Não gostava do futebol até ver aquela genial Seleção (RIP) de 2002. Aí também é covardia: não tinha como não se encantar assistindo um time que reunia Marcos; Roque Júnior, Lúcio e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Ronaldinho Gaúcho, Kléberson e Roberto Carlos; Rivaldo e Ronaldo. Aos oito anos, me apaixonei pelo futebol.

Por influência do meu irmão, virei São-Paulino. Era uma fase não tão gloriosa assim: depois da irretocável primeira metade da década de 90, o jejum durou do Paulista de Denilson e Raí em 98 até o Rio-São Paulo de Cacá e França em 2001. Lembro bem das duas derrotas 3×2 nas finais do Paulista de 2003.

Lembro bem de 2004, quando cheguei com o jornal no colégio impressionado com o fato de Serginho ter morrido no Morumbi. A volta do São Paulo à Libertadores depois de dez anos me ensinou o que é o futebol. Nas oitavas, contra o Rosário Central, o jogo teve roteiro minuciosamente escrito pelos melhores roteiristas dentre os Deuses do Futebol. Ainda nesse ano, a virada contra o Palmeiras, com gol de Cicinho aos 48 depois de 3 rebotes me mostrou como se comemora uma vitória suada em clássico.

Aí veio 2005 e a Libertadores que culminou no que aconteceu há exatos dez anos. Naquele 14 de julho de 2005, o São Paulo derrotou o Atlético-PR e se sagrou tricampeão da América. Minha mente de apenas onze anos não conseguia conceber o quanto aquele momento foi importante. Conseguiu apenas celebrar como nunca e como nunca mais.

Um título que coroou ídolos em todas as posições. O goleiro-artilheiro que ainda não tinha derrubado todos os recordes possíveis. Lugano, o baluarte da raça, exaltado até hoje por não aceitar perder uma bola. Aquela zaga ainda contava com Fabão, Edcarlos e Alex Bruno. Nas laterais, o jovem Cicinho e o pentacampeão Júnior. A dupla de volantes mais entrosada que eu já vi, Mineiro e Josué. Danilo, o morto muito louco. Luizão, Amoroso, Tardelli e Grafite no ataque. E pensar que o ídolo do futsal ainda integrou o elenco no começo da temporada, mas não teve espaço no time sob o comando de Emerson Leão.

Toda a competição foi uma escola de como funciona o futebol. O São Paulo terminou invicto em um grupo que reunia a essência do futebol na América: o time boliviano da altitude (The Strongest), o time argentino que abusava da catimba (Quilmes do zagueiro Desábato, preso em São Paulo após chamar Grafite de macaco) e o time chileno chato (Universidad de Chile).

Nas oitavas, um clássico. Contra o Palmeiras, Cicinho fez um golaço de canhota no jogo de ida, no Parque Antártica, que ainda não era uma arena. Na volta, Rogério marcou o primeiro de pênalti contra outro grande ídolo das metas, São Marcos. No finzinho do jogo, Cicinho fez mais um. Percebeu que os palmeirenses não armaram barreira para uma cobrança de falta de muito (muito) longe e acertou a bola no canto esquerdo de Marcos.

Nas quartas, os mexicanos do Tigres. O jogo de ida foi o suprassumo do melhor ano da carreira de Rogério Ceni. 2005 foi a temporada em que mais marcou gols: 21, sendo 5 só na Libertadores. No Morumbi, o goleiro-artilheiro cobrou duas faltas com perfeição e fez metade dos gols da goleada Tricolor. O árbitro ainda marcou um pênalti para o São Paulo, mas Rogério isolou e perdeu a chance de ser o primeiro goleiro da história a fazer um hat-trick. Na volta, com a classificação encaminhada, o Tricolor perdeu por 2×1 e viu ir embora a chance de um título invicto. Que tragédia…

O chaveamento proporcionou um duelo de titãs nas semi-finais: São Paulo e River Plate. Dois bicampeões coperos y peleadores. Aquele time do River tinha Lucho Gonzáles, Marcelo Gallardo, Javier Mascherano e Marcelo Salas. Na ida no Morumbi, Rogério marcou de pênalti e ZiDanilo acertou um lindo de chuta de fora da área que deixou argentinos caídos pelo caminho. Na volta, Danilo fez o primeiro de cabeça após cobrança de escanteio. O River empatou. Fabão fez o segundo em chute forte e mascado de fora da área. E Amoroso, que estreava naquela partida, preenchendo a vaga deixada pela contusão de Grafite, completou cruzamento de Júnior e fez o terceiro, dando ao São Paulo sua primeira vitória em território argentino e o passe para a decisão da maior competição do continente.

Pela primeira vez na história, a final da Libertadores seria disputada por dois times do mesmo país. O São Paulo iria enfrentar o Atlético-PR, então vice-campeão brasileiro. Em uma polêmica que eu não entendi direito na época, o Furacão foi impedido de jogar na Arena da Baixada (onde o São Paulo nunca venceu), que não comportava os 40 mil torcedores como exigia o regulamento. O Atlético teve que levar o jogo para o Beira-Rio, em Porto Alegre, o que até hoje é motivo de reclamação. Lembro que não estava em casa quando o jogo começou: estava comprando a camisa preta, com um gigante RC na frente e o número 1 nas costas, imortalizadas em todas as fotos que mostram Rogério levantando a taça. Lembro de ouvir pelo rádio o gol de Aloísio e toda a aflição que uma narração pelo rádio causa. Lembro de comemorar em casa o gol de empate, marcado por Durval, contra.

E então, naquele 14 de julho, exatos 10 anos atrás, eu vivi uma noite insuperável. Lembro que era uma quinta-feira, e não a tradicional quarta do futebol. Lembro da disposição dos móveis na sala, dos três amigos do meu irmão que foram assistir o jogo lá em casa e da disposição de todas as pessoas pelos móveis da sala.

Lembro da tensão que me acompanhou durante todo o dia e que começou a se dissipar quando eu vi os mais de 70 mil torcedores receberem o time com o hino, sinalizadores, muita luz e muita fumaça. E lembro de sentir a tensão dar lugar à alegria quando Luizão deu o passe de calcanhar para Danilo na ponta da área. Danilo chuta de primeira com a perna direita e o goleiro dá rebote. O mesmo Danilo divide com o goleiro e outros dois adversários e a bola sobra para Amoroso, tranquilo, desviar do zagueiro e fazer tremer o gigante de concreto. Lembro bem da comemoração de Amoroso, segurando o escudo da camisa e bradando com saudosa raça: “aqui é São Paulo, porra!”

Mas a tensão voltou: no fim do primeiro tempo, pênalti para o Atlético. O mesmo Aloísio Chulapa que fez gol no jogo de ida e seria um ídolo no Tricolor nos anos seguintes caiu na área. Fabrício cobrou. Aqueles segundos em que a bola viajou foram eternos. Rogério voou no canto certo. Deu a entender que defenderia. Por um instante a bola passa por ele e carimba violentamente a trave. Treme pela segunda vez o Morumbi.

Aos 7 do segundo tempo, Cicinho, que fez uma temporada tão maravilhosa que foi contratado pelo Real Madrid, cobrou o escanteio na cabeça do Fabão. O camisa 3, da marca do pênalti, testou com precisão cirúrgica e colocou a bola no ângulo, acima do alcance do zagueiro que cobria a trava. Pela terceira vez, o Cícero Pompeu de Toledo treme, vibra e canta.

Aos 26, Amoroso encara o zagueiro pela direita, perto da área. Puxa a bola para o meio, para perto do zagueiro, que dá o bote. Mais rápido que o bote, Amoroso puxa a bola para a direita, deixa o zagueiro na saudade e entra na área; levanta a cabeça, vê seu companheiro de base no Guarani Luizão livre e faz um cruzamento na medida. O goleiro voa e não acha nada. Luizão empurra pra dentro com tranquilidade, leva os torcedores aos céus e vai às lágrimas. Aos 44 do segundo, ainda teve tempo para aquele garoto estranho vindo da base, de apenas 19 anos, fazer o seu e escrever pela primeira vez (haveria uma outra) seu nome na história da Libertadores da América. Depois de boa jogada de Mineiro, Diego Tardelli domina na entrada da área, corta o zagueiro e bate seco, firme no canto. 4×0.

O jogo terminou e a euforia se estendia aos quase 20 milhões de são-paulinos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. O mesmo São Paulo que mudou o olhar do futebol brasileiro com a Libertadores em 92 e 93 voltava a levantar o segundo troféu mais bonito do futebol – atrás da Copa do Mundo. Hoje me impressiona a eficiência defensiva e a qualidade ofensiva daquele time. Naquela época só me encantava aquele jeito de jogar futebol e eu nem sabia o porquê.

Cada um dos jogos dessa campanha nunca saiu da minha memória. Lembro do clima das noites de meio de semana sempre que o São Paulo jogava essa Libertadores. Lembro do gosto de cada gol. Lembro bem que, se a Copa de 2002 foi o que vi de melhor como torcedor da Seleção, essa Libertadores foi o que vi de melhor como torcedor do São Paulo.

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