arquivo | Literário RSS para esta seção

O manto não está à venda

Por Pedro Abelin

Hoje foram divulgadas imagens dos novos uniformes do Corinthians. Dentre as camisas lançadas, uma delas me chamou mais atenção: a camisa laranja. De acordo com os marqueteiros – que sempre arranjam alguma justificativa esdrúxula para essas camisas – a cor laranja faz alusão ao mítico terrão do Parque São Jorge, por onde passaram diversos ídolos da história corinthiana. Não venho aqui me opor ao lançamento de terceiros uniformes pelos times brasileiros, e muito menos condenar quem as compra. Eu, mesmo que nunca as use, já comprei uma ou outra. Mas pretendo fazer um desabafo, pois creio que os mantos sagrados dos nossos times vêm sendo muito mal tratados nos últimos tempos.

Sei que dizem que há uma necessidade dos clubes venderem camisas e que o mercado demanda uma diversificação de produtos. Também sei que dizem que a tendência é que os clubes tenham cada vez mais uniformes alternativos distintos de suas cores tradicionais. Apesar disso, confesso que me incomodo extremamente em não reconhecer visualmente determinado time – principalmente o meu – em uma partida de futebol. Então que vendam essas camisas, mas não precisa usar elas dentro de campo. E se for usar, que usem bem longe do nosso estádio!

Na minha cabeça, nós temos que identificar prontamente a camisa dos times que assistimos, mesmo que não sejam os nossos. Quando assisto um jogo em La Bombonera, espero que o Boca esteja utilizando uma camisa azul com uma faixa amarela horizontal. Poxa, o Flamengo é rubro-negro, o Cruzeiro é celeste e o Inter é colorado! Além disso, tenho a impressão que a onda das terceiras camisas está poluindo a identidade visual dos estádios. Por exemplo, as torcidas de Santos e Corinthians têm cada vez mais dificuldade de realizar os chamados “mar branco” e “mar preto” em seus estádios, dadas a quantidade de camisas coloridas presentes nas arquibancadas. Por mais que me considere um cara progressista, sou obrigado a admitir meu conservadorismo em relação uniformes de futebol. O mercado não deve pautar as tradições dos nossos clubes, por isso acredito que usar os uniformes tradicionais é uma forma de resistência. Que se danem os marqueteiros, mas meu Corinthians é preto e branco e é assim que eu quero ver ele em campo!

Aqui é sofrido sim

Lucas de Moraes

Era o dia 24 de julho de 2015. Comemorei meu aniversário no dia 16 desse mesmo mês, mas faltava um presente: um titulo da Libertadores. Mas essa história começou muito antes. O ano de 2012 foi inesquecível. Depois de cair e continuar brigando para não cair nos campeonatos seguintes, o Galo montou um bom time e terminou com o vice-campeonato do Brasileirão. Já foi um êxtase, pois era a primeira vez que eu iria acompanhar meu amado time na maior competição da América do Sul, visto que, infelizmente, só me apaixonei pelo futebol em 2007. E mais ainda por aquele time chamado Atlético Mineiro. Ele voltava pro lugar do qual nunca deveria ter saído: a primeira divisão.

Naquela minha primeira Libertadores, existia um entusiasmo imenso. Não queria perder um jogo sequer. Vi o time jogar muito bem e se classificar facilmente num grupo com o São Paulo, Arsenal de Sarandí e The Strongest. Mesmo assim, fiquei um pouco decepcionado com a derrota para o time paulista no último jogo da primeira fase. Já não dava pra terminar a competição invicto.  Um momento para lembrar foi o gol que começou com a esperteza de Marcos Rocha na batida de lateral  ao lançar para o R10, que bebeu um pouco da agua de Ceni e ficou por lá desmarcado. Quando recebeu a bola, correu para linha de fundo e jogou para o Jô fazer o gol.

Antes de começar o mata-mata, achava que seria fácil, pois o time se saiu muito bem no grupo. Classificou-se na primeira colocação geral com aproveitamento de 83%. E o pior segundo colocado geral foi o tricolor paulista. Foi o confronto mais tranquilo dessa fase final, já que o Galo conseguiu vencer dentro da casa do adversário. Não desmereço o tricampeão mundial, mas aquele ano era do galo mesmo. Foi um show do Ronaldinho Gaúcho com participação especial de Jô. Nesse confronto das oitavas, o que me marcou nesse jogo de volta foi o drible espetacular do craque do alvinegro mineiro em cima do Douglas, que acabou trombando com seu companheiro Wellington.

Chegamos às quartas. Eu não conhecia o Tijuana e esperava que fosse fácil passar por eles. Lá no México, a maior dificuldade do time foi jogar em um campo sintético. Jogo muito difícil com o Luan (sim, ele mesmo, o menino maluquinho, um dos personagens principais da Copa do Brasil de 2014) empatando o jogo no finzinho. Dois a dois no placar e o jogo seria desempatado no Independência, mais conhecido como Horto. Animado com o jogo, falei com meu pai para irmos de carro para Belo Horizonte, pois eu precisava presenciar esse jogo na arquibancada. Era um sonho meu. Eu tinha ido ao velho Indepa quando era pequeno e nem lembrava como era. Guardo o ingresso desse jogo como se fosse uma barra de ouro. Os valores se equivalem, apesar da barra de ouro ter imenso valor material e esse ingresso, gigantesco valor sentimental pelo menos para mim. Victor salvou o time no pênalti batido por Riascos aos 47 minutos do segundo tempo.

Acho necessário fazer uma breve pausa para contar um causo que eu acho, no mínimo, interessante. Quando o lançamento de Arce foi feito e Marquez resvalou de cabeça, eu já senti um desconforto. Leonardo Silva estava muito atrasado no lance e a bola chegaria na área para Aguilar finalizar. Cenário perfeito para um gol que derrubaria o alvinegro mineiro naquela competição em que o time estava jogando muito bem. Sorte (achava que era azar, mas depois que acabou o jogo, percebi que estava enganado) que o zagueiro do Atlético Mineiro com a camisa número três derrubou o zagueiro do Tijuana. Todos olharam para o árbitro que apenas apitou marcando a penalidade. Na hora, eu fiquei em silêncio. O desespero da torcida foi geral. E eu pensei: “por que eu vim para BH ver esse jogo? Logo quando venho ver, meu time perde e é eliminado”. Enquanto eu xingava o mundo inteiro, um baiano que estava com uma camisa rosa e estava sentado atrás de mim e de minha família (meu pai e minha irmã) calmamente falou que o melhor jogador do time deles bateria no meio do gol e nosso goleiro pegaria. Eu pensei que não era possível. A penalidade é um modo muito fácil de fazer gol e o goleiro tem muita desvantagem nessas horas. Riascos correu para bater e o final todo mundo já sabe.

Agora era a semifinal contra o Newells Old Boys. Fora de casa mais uma vez, o alvinegro mineiro sofreu e acabou perdendo de 2 a 0. Era muito difícil reverter, mas eu não queria acreditar que o sofrimento que tinha passado nas quartas não serviria para nada. O jogo de volta foi muito sofrido, mas conseguimos fazer os dois gols. Lembro que foi difícil acompanhar o jogo, pois tive um aniversário e naquele estabelecimento tinha uma pequena televisão. Consegui que colocassem no jogo, pois, além de mim, havia mais três atleticanos. Vimos as cobranças de pênaltis sofrendo com as zoações de amigos que torciam para outros times. Os erros de Richarlyson e Jô fizeram parecer que o time cairia ali. Mas o time argentino também errou para nossa alegria. O último a bater foi aquele que fica muito nervoso quando está numa batida seja ela de falta, escanteio ou pênalti: Ronaldinho Gaúcho. Ele eu sabia que não erraria. A bola entrou e foi a vez do último jogador do time adversário: Maxi Rodríguez, melhor jogador daquele time. Victor apareceu mais uma vez e lá estava eu abraçando três atleticanos comemorando muito a vaga na final.

Agora era a final. Primeiro jogo e, novamente, derrota de 2 a 0. Não me preocupei tanto, pois já percebi que era um placar reversível. Além do mais, eu já tinha percebido que tava escrito que aquele título era nosso. O dia do jogo de volta parecia interminável. O tempo não passava e a hora do jogo não chegava. Quando chegou, foi uma descarga de emoções. O momento mais marcante do jogo foi quando El Tanque passou por Victor e preparou-se para bater. Quando ajeitou o corpo, escorregou. Não era algo que eu pudesse compreender. Era o atacante e o gol e ele não conseguiu chutar para botar a bola na rede. Acho que concordo com Alexandre Kalil. Devia ser o pai dele, Elias Kalil, puxando o pé do jogador para que a taça ficasse no Mineirão mesmo. Depois da cabeçada de Leo Silva para fazer o segundo gol, do sufoco nos pênaltis e do Victor nos salvando mais uma vez, veio a tão esperada conquista.

Meu pai fica indignado quando pensa que demorou 62 anos para ver seu time conquistar um campeonato tão importante assim, pois, seu filho, com apenas 18 anos, ganhou de presente de aniversário a Copa Libertadores da América de 2013.

Obs.: o baiano que foi citado no meu texto nem era torcedor do Atlético Mineiro mesmo. Naquele dia, contou que estava na capital de Minas Gerais apenas há umas três semanas e torcia para o Bahia. Mas ele decidiu apoiar um time daquela cidade e escolheu o meu time de coração.

O economista, o dançarino e o poeta.

Por Rafael Montenegro

Naquela mesma mesa daquele mesmo bar, vestindo as mesmas cores, sentam-se, duas vezes por semana, o economista, o dançarino e o poeta.

Ao economista fascina o jogo: os números, o planejamento, as táticas, o pragmatismo, o pensamento cartesiano. Ele reconhece o talento do estrategista, as palavras de Sun Tzu, os tabuleiros de xadrez.

Saltam aos olhos do dançarino o trabalho corporal: o balé, o baile, a ginga, a capoeira, o contrair e relaxar dos músculos. Ele executa e vê executar o fluir, o soar, a leveza, a finta.

O poeta suspira frente à arte: as cores, os sons, a genialidade, o que foge da rotina. Ele regozija-se no místico, no metafísico, no sobrenatural, no ecumênico, no transcedental, no inexplicável.

E é por isso que os três se sentam juntos àquela mesa de bar. Aproveitam um raro denominador comum, um momento compartilhado. Cada um no seu nicho; os três igualmente imersos no futebol.

Alcides Ghiggia e a síndrome de Estocolmo

Arthur de Campos

Síndrome de Estocolmo. Assim é chamado o distúrbio mental desenvolvido por pessoas que passaram por grandes situações de choque e tensão. Consiste na afeição e no carinho desenvolvido pelas vítimas em relação aos seus agressores. Justamente aqueles que causaram tanto sofrimento, amados e queridos por aqueles que sofreram em suas mãos. Ou pés, em nosso caso.

O seu nome era Alcides Ghiggia, ou só Ghiggia para os íntimos. Ele foi o responsável por aquele que a mitologia da bola diz ser o maior silêncio já visto em um estádio de futebol em toda a sua história. O ano era 1950, e o palco da façanha era um saudoso Maracanã lotado, com 200 mil pessoas em suas arquibancadas. Ele era o ponta-direita da seleção do Uruguai que enfrentou o Brasil, time da casa, naquele fatídico dia 16 de julho, final da Copa do Mundo.

Falar de sua habilidade com os pés é uma tarefa árdua para aqueles que nem imaginavam que viriam a esse mundo na época em que ele jogava. Mas falar disso, no caso dele é o de menos. Ghiggia era mais que um jogador de futebol: era o cordão umbilical do brasileiro com o fracasso. O último sobrevivente do Maracanazzo, aquele dia que calou milhões de brasileiros e que condenou tantos jogadores daquela seleção (menção honrosa para o goleiro Barbosa que sofreu até os últimos dias de sua vida com o estigma de vilão daquela Copa) e mudou o jeito brasileiro de se olhar para o futebol.

Aquele gol, aos 34 minutos do segundo tempo, em uma tarde ensolarada no Maraca, rasgou as redes de Barbosa e entrou para a história. O Brasil havia aberto o placar com Friaça, sofrido o empate pelos pés de Schiaffino. Mas na cabeça do torcedor, aquilo não era problema. A vitória viria, afinal, somos os brasileiros, não é mesmo? “A ginga joga ao nosso lado, não há o que temer! ”. Enfim, havia ali um Ghiggia para nos lembrar que a derrota não apenas faz parte do jogo, mas pode vir quando se menos espera.

Mas, diferentemente do que se pode pensar, o algoz brasileiro não odiava o Brasil. Muito pelo contrário, desenvolveu um carinho enorme pelo nosso país, e foi abraçado. Era a Síndrome de Estocolmo agindo. O cara que arrancou das nossas mãos o primeiro título mundial era brasileiro, na alma. Tão brasileiro era que morreu do jeito que todo brasileiro amante de futebol sonha: vendo jogo. Morreu vendo o esporte que havia lhe dado tudo na vida. Que nos dá forças todo dia para levantar de manhã e esperar pacientemente as quartas e os domingos.

Síndrome de Estocolmo essa que viria a jogar do nosso lado, oito anos depois na Copa da Suécia. Na própria Estocolmo viria, dos pés do menino de 17 anos que viria a ser coroado Rei, o tão sonhado título, e Ghiggia conseguiu de vez que o povo brasileiro aceitasse as suas desculpas. O Brasil viria a se tornar o maior campeão de Copas do Mundo. A de 50 não fazia mais falta, pois tinham mais cinco na estante que fica no coração do torcedor brasileiro.

E nos braços do povo uruguaio e do povo brasileiro, aos 88 anos ele se foi, e com toda certeza em paz. Nos deixou órfãos de uma figura simpática e afável, que amava o Futebol acima de tudo, e nos trouxe a lembrança da derrota retumbante, pouco mais de um ano após a mais retumbante derrota da história do Futebol, e que com certeza foi pouco. Fica a certeza que, lá do céu, ele bate bola com os anjos e, com uma bandeira do Uruguai e outra do Brasil na mão, torce por dias melhores para nós, e a reflexão do que se fazer depois de um trauma daqueles. Que venha outra síndrome de Estocolmo.

10 anos do Tri: lembranças de um pivete de 11 anos.

Por Rafael Montenegro

Eu era um pivete estranho. Não jogava bola no intervalo e ironizava 22 marmanjos correrem atrás de uma bola. Não gostava do futebol até ver aquela genial Seleção (RIP) de 2002. Aí também é covardia: não tinha como não se encantar assistindo um time que reunia Marcos; Roque Júnior, Lúcio e Edmilson; Cafu, Gilberto Silva, Ronaldinho Gaúcho, Kléberson e Roberto Carlos; Rivaldo e Ronaldo. Aos oito anos, me apaixonei pelo futebol.

Por influência do meu irmão, virei São-Paulino. Era uma fase não tão gloriosa assim: depois da irretocável primeira metade da década de 90, o jejum durou do Paulista de Denilson e Raí em 98 até o Rio-São Paulo de Cacá e França em 2001. Lembro bem das duas derrotas 3×2 nas finais do Paulista de 2003.

Lembro bem de 2004, quando cheguei com o jornal no colégio impressionado com o fato de Serginho ter morrido no Morumbi. A volta do São Paulo à Libertadores depois de dez anos me ensinou o que é o futebol. Nas oitavas, contra o Rosário Central, o jogo teve roteiro minuciosamente escrito pelos melhores roteiristas dentre os Deuses do Futebol. Ainda nesse ano, a virada contra o Palmeiras, com gol de Cicinho aos 48 depois de 3 rebotes me mostrou como se comemora uma vitória suada em clássico.

Aí veio 2005 e a Libertadores que culminou no que aconteceu há exatos dez anos. Naquele 14 de julho de 2005, o São Paulo derrotou o Atlético-PR e se sagrou tricampeão da América. Minha mente de apenas onze anos não conseguia conceber o quanto aquele momento foi importante. Conseguiu apenas celebrar como nunca e como nunca mais.

Um título que coroou ídolos em todas as posições. O goleiro-artilheiro que ainda não tinha derrubado todos os recordes possíveis. Lugano, o baluarte da raça, exaltado até hoje por não aceitar perder uma bola. Aquela zaga ainda contava com Fabão, Edcarlos e Alex Bruno. Nas laterais, o jovem Cicinho e o pentacampeão Júnior. A dupla de volantes mais entrosada que eu já vi, Mineiro e Josué. Danilo, o morto muito louco. Luizão, Amoroso, Tardelli e Grafite no ataque. E pensar que o ídolo do futsal ainda integrou o elenco no começo da temporada, mas não teve espaço no time sob o comando de Emerson Leão.

Toda a competição foi uma escola de como funciona o futebol. O São Paulo terminou invicto em um grupo que reunia a essência do futebol na América: o time boliviano da altitude (The Strongest), o time argentino que abusava da catimba (Quilmes do zagueiro Desábato, preso em São Paulo após chamar Grafite de macaco) e o time chileno chato (Universidad de Chile).

Nas oitavas, um clássico. Contra o Palmeiras, Cicinho fez um golaço de canhota no jogo de ida, no Parque Antártica, que ainda não era uma arena. Na volta, Rogério marcou o primeiro de pênalti contra outro grande ídolo das metas, São Marcos. No finzinho do jogo, Cicinho fez mais um. Percebeu que os palmeirenses não armaram barreira para uma cobrança de falta de muito (muito) longe e acertou a bola no canto esquerdo de Marcos.

Nas quartas, os mexicanos do Tigres. O jogo de ida foi o suprassumo do melhor ano da carreira de Rogério Ceni. 2005 foi a temporada em que mais marcou gols: 21, sendo 5 só na Libertadores. No Morumbi, o goleiro-artilheiro cobrou duas faltas com perfeição e fez metade dos gols da goleada Tricolor. O árbitro ainda marcou um pênalti para o São Paulo, mas Rogério isolou e perdeu a chance de ser o primeiro goleiro da história a fazer um hat-trick. Na volta, com a classificação encaminhada, o Tricolor perdeu por 2×1 e viu ir embora a chance de um título invicto. Que tragédia…

O chaveamento proporcionou um duelo de titãs nas semi-finais: São Paulo e River Plate. Dois bicampeões coperos y peleadores. Aquele time do River tinha Lucho Gonzáles, Marcelo Gallardo, Javier Mascherano e Marcelo Salas. Na ida no Morumbi, Rogério marcou de pênalti e ZiDanilo acertou um lindo de chuta de fora da área que deixou argentinos caídos pelo caminho. Na volta, Danilo fez o primeiro de cabeça após cobrança de escanteio. O River empatou. Fabão fez o segundo em chute forte e mascado de fora da área. E Amoroso, que estreava naquela partida, preenchendo a vaga deixada pela contusão de Grafite, completou cruzamento de Júnior e fez o terceiro, dando ao São Paulo sua primeira vitória em território argentino e o passe para a decisão da maior competição do continente.

Pela primeira vez na história, a final da Libertadores seria disputada por dois times do mesmo país. O São Paulo iria enfrentar o Atlético-PR, então vice-campeão brasileiro. Em uma polêmica que eu não entendi direito na época, o Furacão foi impedido de jogar na Arena da Baixada (onde o São Paulo nunca venceu), que não comportava os 40 mil torcedores como exigia o regulamento. O Atlético teve que levar o jogo para o Beira-Rio, em Porto Alegre, o que até hoje é motivo de reclamação. Lembro que não estava em casa quando o jogo começou: estava comprando a camisa preta, com um gigante RC na frente e o número 1 nas costas, imortalizadas em todas as fotos que mostram Rogério levantando a taça. Lembro de ouvir pelo rádio o gol de Aloísio e toda a aflição que uma narração pelo rádio causa. Lembro de comemorar em casa o gol de empate, marcado por Durval, contra.

E então, naquele 14 de julho, exatos 10 anos atrás, eu vivi uma noite insuperável. Lembro que era uma quinta-feira, e não a tradicional quarta do futebol. Lembro da disposição dos móveis na sala, dos três amigos do meu irmão que foram assistir o jogo lá em casa e da disposição de todas as pessoas pelos móveis da sala.

Lembro da tensão que me acompanhou durante todo o dia e que começou a se dissipar quando eu vi os mais de 70 mil torcedores receberem o time com o hino, sinalizadores, muita luz e muita fumaça. E lembro de sentir a tensão dar lugar à alegria quando Luizão deu o passe de calcanhar para Danilo na ponta da área. Danilo chuta de primeira com a perna direita e o goleiro dá rebote. O mesmo Danilo divide com o goleiro e outros dois adversários e a bola sobra para Amoroso, tranquilo, desviar do zagueiro e fazer tremer o gigante de concreto. Lembro bem da comemoração de Amoroso, segurando o escudo da camisa e bradando com saudosa raça: “aqui é São Paulo, porra!”

Mas a tensão voltou: no fim do primeiro tempo, pênalti para o Atlético. O mesmo Aloísio Chulapa que fez gol no jogo de ida e seria um ídolo no Tricolor nos anos seguintes caiu na área. Fabrício cobrou. Aqueles segundos em que a bola viajou foram eternos. Rogério voou no canto certo. Deu a entender que defenderia. Por um instante a bola passa por ele e carimba violentamente a trave. Treme pela segunda vez o Morumbi.

Aos 7 do segundo tempo, Cicinho, que fez uma temporada tão maravilhosa que foi contratado pelo Real Madrid, cobrou o escanteio na cabeça do Fabão. O camisa 3, da marca do pênalti, testou com precisão cirúrgica e colocou a bola no ângulo, acima do alcance do zagueiro que cobria a trava. Pela terceira vez, o Cícero Pompeu de Toledo treme, vibra e canta.

Aos 26, Amoroso encara o zagueiro pela direita, perto da área. Puxa a bola para o meio, para perto do zagueiro, que dá o bote. Mais rápido que o bote, Amoroso puxa a bola para a direita, deixa o zagueiro na saudade e entra na área; levanta a cabeça, vê seu companheiro de base no Guarani Luizão livre e faz um cruzamento na medida. O goleiro voa e não acha nada. Luizão empurra pra dentro com tranquilidade, leva os torcedores aos céus e vai às lágrimas. Aos 44 do segundo, ainda teve tempo para aquele garoto estranho vindo da base, de apenas 19 anos, fazer o seu e escrever pela primeira vez (haveria uma outra) seu nome na história da Libertadores da América. Depois de boa jogada de Mineiro, Diego Tardelli domina na entrada da área, corta o zagueiro e bate seco, firme no canto. 4×0.

O jogo terminou e a euforia se estendia aos quase 20 milhões de são-paulinos espalhados pelo Brasil e pelo mundo. O mesmo São Paulo que mudou o olhar do futebol brasileiro com a Libertadores em 92 e 93 voltava a levantar o segundo troféu mais bonito do futebol – atrás da Copa do Mundo. Hoje me impressiona a eficiência defensiva e a qualidade ofensiva daquele time. Naquela época só me encantava aquele jeito de jogar futebol e eu nem sabia o porquê.

Cada um dos jogos dessa campanha nunca saiu da minha memória. Lembro do clima das noites de meio de semana sempre que o São Paulo jogava essa Libertadores. Lembro do gosto de cada gol. Lembro bem que, se a Copa de 2002 foi o que vi de melhor como torcedor da Seleção, essa Libertadores foi o que vi de melhor como torcedor do São Paulo.

Pé de Chinelo

André Porto

A maior sorte de um chinelo tem tudo a ver com os pés, mas nada a ver com ser pisado por eles. Quem já foi o camisa 10 do seu time num fim de tarde do Maracanã da sua rua não pode ousar dizer que chinelos foram feitos para serem calçados. A verdadeira função de um par de havaianas é ser um golzinho. É a glória. Vão aos céus, sem sair do chão. Ninguém pode aceitar que ser pisoteado a vida toda é o sonho de alguém. Quando o Sol começa a querer sumir, se separam do seu par, mas o suficiente para não sentir muita saudade. Logo em frente, outro par de chinelos, geralmente desconhecido. Sabem telepaticamente que também estão vivendo a mesma euforia, apesar do estado temporário de rivais mortais. Somente um sairá dali como vencedor.

A correria começa, a bola rola, a molecada se inspira. Suor, gritaria, golaços, comemorações. Nem mesmo o par vencedor escapa das polêmicas acusações “não foi gol! se passou por cima do chinelo, foi na trave!” e “é lógico que foi gol, só porque tá perdendo vai começar a roubar!”. Entre mortos, feridos e pisoteados, os 4 saem de campo com a certeza de terem tido seus 10 minutos ou 2 gols de fama. Eram os arcos, os objetivos de vida, as razões de castigos por ter chegado muito tarde em casa. Quando se ouvia ao longe a voz da mãe chamando pra tomar banho ou os grandões de números maiores chegando, se resignavam e topavam até serem calçados novamente. Oportunidade não ia faltar. O próximo fim de tarde estava logo ali.

Hoje em dia, os tempos são outros. Passam mais tempo sendo colocados de lado, vida pé de chinelo. Mais sozinhos que chinelo de saci. Sem emoção, sem dramas, sem protagonismo. A maioria prefere jogar futebol com as mãos, ou com os dedos. O máximo é um prego na rua ou uma tira rebelde que se solta de repente. Ninguém dá mais bola pros chinelos.

O futebol é o esporte mais democrático do universo. Só pede um gol e uma bola. Ou um par de chinelos e uma pedrinha. Ou duas marcas no chão e uma fruta caída de uma árvore. Ou só imaginação mesmo. O suficiente para acender a emoção de se fazer um gol. Uma paixão que nem mesmo o melhor simulador consegue imitar. Aquela correria pra terminar o dever de casa pra poder correr de verdade por aí atrás de uma bola é única. Até aceito que podem acontecer algumas mudanças com o tempo. Não quero ser anti tecnologias e modernidades. É só um anseio pela volta do espírito de gritaria das esquinas que foi se calando com o tempo.

Não tem como deixar de pensar que a frieza, a chatice, a morosidade dos jogos que vemos hoje pela televisão – dentro das 4 linhas e principalmente nas arquibancadas – têm uma relação direta com isso. Se a emoção mais pura desse esporte era coisa comum em qualquer esquina, não pode ter morrido. Aquele ar lúdico e inspirador, os sonhos e a imaginação que sempre cercaram o futebol não podem ser esquecidas nunca. Pé no chão, só se for descalço.

Uma experiência de campo

Vinicius Prado Januzzi

Aviso ao/à leitor/a Esse é um texto que pode parecer atrasado. Não é. O Corinthians, nesse meio tempo, já venceu mais uma. O que digo abaixo não contradiz nada o que ocorreu depois com o time e com o resto do mundo.

Torcedores corinthianos durante a partida (Foto: Célio Messias/ LANCE!Press)

Torcedores corinthianos durante a partida (Foto: Célio Messias/ LANCE!Press)

Prólogo
Domingo é dia de jogo. Acima de tudo, de jogo no estádio. Quando se mora longe da casa de seu time e ele vem para perto de você, então, é questão de obrigação estar lá, apoiando, torcendo, xingando e gritando. E assim foi no domingo duas semanas atrás (05/08).

O cenário
Goiás x Corinthians, no Estádio Serra Dourada, em Goiânia, em jogo válido pela 11ª rodada do Brasileirão. Pouco mais de 9 mil pagantes, em sua maioria corinthianos, com ingressos valendo na média 50 reais a inteira.

O roteiro
Quando o Corinthians joga longe do Itaquerão, não se espera muito. A expectativa é de uma partida morna, “tática” como diriam alguns comentaristas, sem muito brilho e com chances mínimas de gol, para ambos os lados. Apesar do 0x0 e das perspectivas de antes do jogo, não foi o que vi em campo. Ambas as equipes, sim, privilegiaram suas defesas e arriscaram pouco à frente, mas da parte alvinegra, sendo alvinegro, fiquei satisfeito. O Corinthians, diante do ferrolho goianiense, postou-se bem e conseguiu algumas boas trocas de passes e triangulações. Jadson, o camisa 10, conduziu a equipe e, não fosse o cansaço ao final do segundo tempo, poderia ter contribuído com algum golzinho ou assistência. O Goiás suou a camisa e fez o que pode para segurar o adversário, jogando-se vez ou outra aos contra-ataques, sempre com muita cautela. O empate sem gols foi proporcional ao que os jogadores demonstraram em campo. Os bastidores – da arquibancada Aqui entra em cena o principal ponto que trago à discussão: a torcida.

Cena 1: Ao longo da partida, fiquei em pé todo o tempo. Sentei apenas duas vezes, quando as pernas já não me sustentavam e dava a elas um pouco de descanso merecido. Em nenhum momento, torcedores ao meu lado resolveram se levantar. Mesmo quando o Corinthians chegava próximo ao gol, o máximo que se via era um pequeno deslocamento das nádegas em relação às arquibancadas de cimento do Serra Dourada.

Cena 2: Cantos e coros, então, foram mais raros que uma música boa do Capital Inicial. Quase não se ouviu, ao longo de todo o jogo, nenhuma “puxada” mais relevante. As exceções ficaram por conta da Gaviões da Fiel e da Coringão Chopp, que não pararam um segundo sequer. O máximo de esforço empreendido pelos que estavam ao meu lado vinha de algumas vaias momentâneas em cobranças de falta do Goiás ou um tremular de mãos quando Jadson ia para a bola parada. No mais, olhares confusos para mim e meu amigo, Matheus Perez, que gritávamos como bezerros desmamados.

Cena 3: Eis que, na metade do primeiro tempo, surge o (in)esperado. Três policiais militares, dois homens e uma mulher, se aproximam de nós. Com a voz impostada, pedem para que nos sentemos. Por quê?, perguntamos. Alguém reclamou? Estamos atrapalhando alguém? Somente pedimos para que os senhores se sentem, disse o mais velho deles. Novamente questionamos: mas por que precisamos sentar? São determinações, senhores, por mim vocês poderiam ficar, mas peço para que se sentem. Ok, senhor, vamos nos sentar. Por dois minutos, é claro, até quando já tinham dado as costas e caminhado alguns bons metros de nós.

Cena 4: Disse a vocês que a torcida não se manifestou durante boa parte do partida. A bem da verdade foi isso mesmo. Estávamos, no entanto, sentados de frente para as cabines de TV e de Rádio. Bastava pôr os pés nos próprios calcanhares ou subir em pequena mureta ali próxima que se podiam ver todos os comentaristas e locutores responsáveis por transmitir aquela partida. Entre eles, Juliano Belletti, ex-lateral da seleção brasileira, do Barcelona, do Chelsea e do São Paulo. Por essa última filiação, o atual comentarista do SporTV logo foi chamado de bambi, viadinho, bichinha e namorado do Richarlyson. Se ao longo dos 90 minutos, grilos foram ouvidos, quando Belleti foi descoberto, Eureca!, podia-se torcer. “Belletti, viado, Belletti, viado”. O futebol, enfim, é das maiores alegrias, mas também das maiores injustiças.

Epílogo
A saída de jogo no Serra Dourada sempre promete. Brigas entre as torcidas são frequentes e a pancadaria sobra até para o último dos moicanos. Tudo caminhava bem mesmo 15 minutos após o fim da partida, quando, não mais que de repente, bombas e cavalos são acionados. Não brigavam goianienses e corinthianos, mas corinthianos, a Polícia Militar e a Tropa de Choque. Não me interessam as notícias nem as notas oficiais sobre o ocorrido. Em questão de segundos, senhores e senhoras fardados partiram para cima dos torcedores e torcedoras, cercando-os. Nos seus olhos, de ambos, não se sabia muito o que fazer dali em diante: por que bato, por que apanho, quando isso acaba, que horas posso voltar para casa? Ao lado, ouvia-se: acabem com esses vagabundos, manda mesmo pra cadeia, é isso mesmo, aprontou, tem que apanhar. Triste ou não, não sabia para quem aquilo estava sendo falado.